A Justiça terrena causaria pesar a Djim, tão desvirtuado tem sido o seu sentido. E os mortos, esses zombariam do que no mundo se chama equidade.
Sim. Morte e prisão é o que distribuímos aos pequemos transgressores das leis, ao passo que honra, riqueza e alto respeito tributamos aos grandes piratas.
Condenamos quem furta uma flor. Mas quem se apodera de um campo é um cavalheiro. Deve morrer quem mate o corpo; e para quem mate o espírito, liberdade.
II
Este mundo não passa de um vinhedo
cujo dono e chefe é o Tempo,
que só cuida daqueles que se abismam
em sonhos sem nexo e sem sentido.
Os homens bebem e põem-se a correr
como cavalos endemoninhados.
Por isso alguns são ruidosos ao rezar,
outros, frenéticos, quando cuidam de comprar.
Poucos na terra sentem o sabor da vida
e não se enjoam de seus excessos.
Nem desviam as suas fontes para taças
em que seus sonhos flutuem e naufraguem.
Se encontrardes, por acaso, uma alma sóbria
no meio desta orgia louca,
maravilhai-vos: é como a lua que encontrou
uma nuvem de chuva como pálio.
III
No campo ninguém se aflige,
ninguém se abate com os seus pesares.
Os zéfiros segredam apenas compaixão,
quando murmuram entre o arvoredo.
Dai-me uma flauta e cantai comigo!
que o canto apague as mágoas,
pois o trinado da flauta repercute,
quando passado e futuro se entrelaçam...
IV
O homem livre constrói na sua lutao cárcere em que irá prender-se.E quanto se afasta do clã familiar,tomba escravo de uma idéia,ou das carícias de um amor...
V
A Ciência segue amplas estradas.Conhecemos o seu começo, mas perdemos osseus limites.Pois o Tempo e o Destino dirigem o seu curso,e não alcançamos ver além das curvas doscaminhos...O que mais importa na Sabedoriaé o sonho a que se apega o homem vitoriosoque é firme e incólume ao ridículo, e que semantenha calmoe por isto caminha sereno, indiferente e humilde.Assim é o profeta quando chegaenvolvido no manto do seu pensamentoe se encontra no meio do seu povoque não percebe os tesouros que ele carrega.
Ele é um estranho nesta vida.Estranho aos que louvam e aos que blasfema.Pois alça a tocha da verdade,mesmo que a chama desta o devore.Ele é valente, embora, ao contrário,pareça apenas gentil e cordial.É distante dos que lhe estejam perto,tanto quanto dos que lhe estejam longe.
VI
A felicidade é um mito que buscamos; mas dele nos cansamos quando se materializa, tal como o rio que desce veloz pelos campos e que ao chegar se arrasta sonolento.
Pois o homem só é feliz na aspiração de ser feliz. Sempre que alcança um sonho, entedia-se e se lança a outros vôos pelas alturas.
Se encontrardes, por acaso, um homem feliz, esteja contente com o seu Fado e, ao contrário de toda a Humidade, orai para que seu Nirvana não seja perturbado.
VII
Esquecem-se as glórias dos Conquistadores intrépidos. Mas nunca até o fim dos tempos nos esqueceremos dos grandes amorosos.
No coração do guerreiro macedônio vislumbramos um matadouro; mas no de ais entrevemos um templo para esponsais.
No triunfo do primeiro descobre-se a derrota ignóbil; enquanto na frustração de ais, a vitória foi completa.
Pois o amor aninha-se apenas na alma - não no corpo – e, como o vinho, ele estimula nossa espiritualidade a acolher as bênçãos do Amor Divino.
VIII
Na terra, a morte é o fim, para quem é apenas o filho da terra. Mas àquele que tem raízes no etéreo, ela é apenas o princípio do triunfo certo e seu.
Quem abraça a aurora em sonhos certamente é imortal. Se ele dormir a sua longa noite, dormitará num mar de tranquilidade.
Mas quem à terra, ao chão com apego se agarrar, no chão rastejará, mesmo acordado, até o final. A morte, como o mar, será vencida por quem a enfrentar de alma leve. Os de alma turva – se afogarão.
IX
No campo só há a lembrança dos que se amaram ardorosamente. Quanto aos reis que governaram do alto de tronos opressores, restam
as páginas, apenas, da história de seus crimes. Mas a lembrança dos apaixonados, esta ficou, sublime, pelas campinas em flor...
X
A cultura que o povo tem hoje é como a neblina sobre o campo. Ao despontar, porém, do sol, seus raios desfarão a névoa...
Extraído do livro “A Procissão”, de Kahlil Gibran, tradução de Emil Farhat, Ed. Record