Ficsonho
caminhávamos à beira da rua
quieta
alguns carros cruzavam o silêncio
e os pássaros revoavam sua fúria
viva
na disputa de frutas
ocupados entre cantar e bicar
a manhã amadurava em sol
ardendo a pele tão cedo
e os membros terrestres queriam asas
alcançar a sombra dos pássaros
ir além dos passos
vulgares, lentos
alçar o corpo grave
além da rua
além dos carros
além das árvores
além das aves
além das nuvens
as costas recostadas ao tronco
rugoso
os pés enraizados na calçada
rachada
os braços envolvendo
outros braços
à espera de voltar ao destino
conhecido
e as areias seguiam seu curso
lento ou veloz
no pulso do tempo
minutos, horas, dias
tempo que voa
e tudo transforma
inclusive braços presos
em asas
pés pousados
em caminho
pássaros
em silêncio
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“e quando o amor acaba
resta apenas a ficção”
(Carola Saavedra, Inventário das coisas ausentes)
talvez seja
apenas ficção
o amor
a pena
da ficção
e o sangue
que nela pulsa
tinge o silêncio
de sua ausência
com sua impossível
música
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sombra de pássaros
sempre passos
à frente
ou atrás do desejo
intangível
como amor
que se sonha
pensando viver
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bússola
encontrar a paz
no meio do redemoinho
o silêncio
no cio do burburinho
o a-mor
no fio que destece a-morte
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Ave poeta
Para Javier
meus dedos já sabem
de cor
as linhas com que o amor
desenhou teu rosto
tantas vezes passearam
na planície da fronte
até a campina macia
sobre teus olhos
e se deitaram nos cílios
que os sombreiam
e que minha boca ama
porque velam tua luz morena
tuas histórias, tua luta
teus sonhos, utopias
– vislumbres d’outros mundos –
sementes plantadas na tua poesia
e da tua flauta órfica
soa a palavra canora
anúncio e memória
de uma nova antiga aurora
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amor é quimera
em constante mutação
vez ou outra surpreendo
de soslaio
sua fuça fugidia
e capto uma libélula
ensaio entre inseto
e bailarina de ar
outras vezes paquiderme de cristal
em coração acidentado
a cada pisada
abre abismos
impossíveis de atravessar
mas talvez seja mesmo
esquisito ornitorrinco
indeciso entre serpente foca e pato
anfíbio transitório
num mundo onde não tem lugar
Quíron Pégaso Unicórnio
o amor anda a galope
por caminhos de pântano e pedra
areia escaldante e neve
e embora desacreditado
pesado de cicatrizes
segue adiante
tangendo na lira
seu canto de errância
amor, enfim, é hidra
de cabeças infindas
que Héracles confinou
7 mil léguas do chão
mas no coração andarilho
os pés sentem seu pulso
sua respiração ofegante
a cada passo
do caminho esquecido
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pássaro de fogo
transmuta terra
em pedra
em lava
água torna
nuvem
e o meu coração
enchente de rio
rio rio
corrente de flores
abertas sobre dores
amor
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meu amor
é minha paz no olho do caos
ilha de poesia
em meio aos pregões da avenida
quando o jogo fútil do mundo me extravia de mim
tua palavra me acorda
teu olhar me refloresce
teu abraço me aquece
e me recordo de mim, de nós
te quero a cada nascer da lua
em todo pôr do sol
a cada levantar da estrela
no botão que se abre
ao som da tua voz poeta
nas asas do teu coração menino
que me inspira a te amar mais e mais